O Meridiano de Sangue da violência colonial

Pois suas ideias são terríveis e seus corações são fracos. Seus atos de piedade e de crueldade são absurdos, sem calma, como que irresistíveis. Enfim, vocês temem o sangue cada vez mais. Vocês temem o sangue e o tempo.

PAUL VALÉRY

No final de 2020, também conhecido como um dos piores anos da humanidade, resolvi focar meu tempo livre nas leituras, ler obras consideradas clássicas que eu nunca tive tempo de ler e eis que começo a ler o livro Meridiano de Sangue, trazido pela Companhia das Letras. Obra intensa do autor Cormac Mccarthy, esse foi um livro que me tragou para um mundo sanguinário, como uma jornada à escuridão, com um retrato nu e cru da violência expedicional promovida pelo governo dos Estados Unidos nas terras mexicanas e nas terras reivindicadas e protegidas pelos povos nativos, sobre como a hegemonização forçada do colonialismo que perdura até hoje força o oprimido a morrer e perder sua cultura, um caos acolhido sob o capital da classe dominante.

Começamos a leitura na pele de um menino chamado “Kid”, que tem um passado absolutamente triste e pobre. Sendo brutalizado por questões de sobrevivência, ele será nosso protagonista da história e nosso olhar do mundo ao redor dele, seremos como ele um observador da crueldade humana. Logo no início ele foge de sua família e vaga sem muita razão ou esperança de mudança de vida, quando depois de ser preso por se envolver numa confusão, é recrutado por um grupo de mercenários liderados pelo bando de Glanton, baseado numa figura realmente existente que liderava operações de massacres aos nativos na região da fronteira do México. Glanton é um brutalizado também, formando um grupo de indivíduos totalmente deformados até fisicamente, se mostrando meros aparatos de uma grande iniciativa colonialista sangrenta.

A noite assumia mil e uma formas ali naqueles ermos e ele mantinha os olhos fixos no terreno diante de si. A luz das estrelas e a lua minguante lançavam uma tênue sombra de suas andanças na escuridão do deserto e ao longo de todos os cumes os lobos uivavam e se deslocavam para o norte em direção à matança. Andou a noite inteira e ainda assim conseguia ver as fogueiras atrás de si.

O bando de Glanton, os protagonistas da trama e a figura assustadora do Juiz atrás. Arte de Giorgio Spalleta.

Esses indivíduos negligenciados socialmente são absolutamente controlados pelo fundamentalismo religioso (temos um ex padre no bando) e pelo racismo estatizado para se sentirem moralmente superiores ou incluídos em alguma forma de grupo, mostrando a típica forma da extrema direita moderna ou grupos neonazistas e fascistas de “acolher” pessoas socialmente reclusas ou com alguns problemas para se aproveitar dessas fragilidades para darem um certo senso de pertencimento, de grupo, de busca por uma moral superior, mesmo que para isso se tenha que fazer as piores crueldades possíveis.

Kid se vê num bando que recruta esses párias sociais para realizar o trabalho sujo do governo, que realiza os piores tipos de massacre; não só assassinatos, mas todas as variações da crueldade humana, incluindo torturas e violações, todas sendo na maioria incentivadas pela figura mais central da obra, um homem sem nenhum pelo no corpo, pálido, careca e extremamente alto e forte que é apelidado de “O Juiz”. Assim como sua própria aparência, O Juiz é uma figura quase que sobrenatural na obra, mostrando o apego do homem determinista à visão simplória da previsibilidade do mundo, da inevitabilidade Hobbesiana da violência humana, mas sem questionar que essa violência só é formada e justificada pelos interesses da classe dominante.

Todas as vezes que esses mesmos americanos são postos em territórios Apache ou dos Yumas, como aparece no final do livro, eles são bem acolhidos e respeitados, mostrando que o povo nativo não tem o medo do “homem ocidental” da inevitabilidade de crueldade inerente ao humano, mostrando que a nossa cultura ocidental é enraizada no sangue dos nativos mortos, da filosofia e pensamentos que justificam a liberdade para se fazer o que quiser com os povos ditos “inferiores”.

The Kid.

O Juiz é um personagem assustador e ao mesmo tempo extremamente fascinante, ele clama que a guerra é eterna, que o ser humano quer o sangue, a crueldade, mas ao mesmo tempo é um indivíduo que possui erudição, leitura e conhecimentos jurídicos, possui um caderno onde registra desenhos de tudo que passa pela sua visão pelo caminho da excursão genocida de seu bando, destruindo tudo que desenha no mundo físico após o registro terminado, mostrando o propósito dessa retórica determinista que justifica a violência desenfreada, o apagamento histórico cultural de um povo, a história de todos os povos colonizados e perseguidos, do passado e até os dias de hoje, mostrando que quem controla o discurso, a linguagem e a narrativa, dita o enredo dominante, e por isso ele não se cansa de registrar em seu diário as coisas que vê pelo caminho.

O “Juiz”

Entre a civilização e a Barbárie

Quem o reconhece é Rosenberg, que expressa sua admiração pelo autor norte-americano Lothrop Stoddard, por ter sido quem cunhou o termo em questão, que aparece no subtitulo (The Menace of the Under Man, “A ameaça do sub-homem”, em inglês no original) de um livro publicado em Nova Iorque, em 1922, e da versão alemã, surgida três anos mais tarde. Quanto ao significado, Stoddard esclarece que a palavra indica a massa de “selvagens e bárbaros”, “essencialmente incapazes de civilização e incorrigveis inimigos desta”, com os quais é preciso proceder a um radical ajuste de contas, caso se deseje vencer a ameaça de derrocada da civilização.

Domenico Losurdo em “As raízes Norte Americanas do Nazismo”

Cormac Mccarthy mostra em sua obra os poderes da linguagem, da narrativa, do porque esse cenário idealizado do velho oeste com figuras como John Wayne ou Billy The Kid é narrado como algo lindo e moralizante e de como o propósito da caçada aos “Negróides”, ditos pelos próprios membros dos bandos, se referindo aos nativos do México e da fronteira dos países é ocultado até hoje ou se tenta ocultar de uma das mais diversas crueldades do capitalismo, sempre o povo dito como “bárbaro, cruel ou até ingênuo” será o mesmo perseguido pelos ocidentais “donos” da moral e dos bons costumes, e quando esse povo perseguido exige seus direitos ou responde a violências sofridas com a violência como forma de defesa, é sempre tachado como “bárbaro, cruel, inconsciente”.

Assim como observamos nas narrativas da grande mídia construídas ao longo da história, seja temendo protestos reivindicando direitos verdadeiros do povo negro oprimido, seja exaltando uma das figuras que mais ajudou a dizimar o povo e a nação da Líbia, que foi o presidente dos Estados Unidos Barack Obama. Logo concluímos que quem realmente possui a narrativa e a linguagem dominante ganha o argumento e a opinião da maioria.

Parece promissor, mas uma leitura e você tem a certeza de que é INFILMÁVEL…

Meridiano de sangue veio numa edição lindíssima nova feita no ano passado pela Companhia das Letras, com capa dura e uma arte de capa lindamente minimalista, um livro que tenho digital comprado mas que essa nova edição com certeza irá pra minha prateleira de livros físicos, porque é simplesmente linda. A tradução continua a mesma da edição anterior e continua ótima, a única ressalva é que como se trata de um romance de formação, Kid depois é chamado de “The Man”, na versão em inglês, mostrando que ele próprio cresceu, coisa que não é muito bem explicada narrativamente na tradução, porém tirando isso, é impecável. Se preparem para um livro cru e cruel, realidades duras de uma época brutal e que continuará tendo a justificativa e apoio enquanto não compreendermos o que significa o verdadeiro imperialismo, o controle do colonialismo sobre as nações oprimidas, e nos lembrarmos sempre que se não falarmos de colonialismo, temos que nos calar sobre fascismo e nazismo.

  • Editora : Alfaguara; 2ª edição (16 novembro 2020)
  • Idioma: : Português
  • Capa comum : 352 páginas
  • Preço: 69,90

Texto por: Matheus Martiniano (@Martinianofromars)

Minuteman ZN
De vez em quando, um minuteman convidado aparece aqui na Zona Negativa para resenhar um quadrinho, ou para publicar a próxima matéria que irá, por fim, explodir sua cabeça, subverter a realidade e nos levar ao salto quântico para o próximo nível dimensional. Não sabemos exatamente quem são essas pessoas, a não ser que elas abram mão do anonimato e decidam assinar seus verdadeiros (??) nomes ao final do texto. Mas francamente, 'quem' elas são não é o preocupante. Preocupe-se com as palavras delas, que rastejam lentamente para dentro da sua cabeça. Todos são minutemen. Ninguém é minuteman.
O grande irmão está de olho em você. Aprenda a ser invisível.

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