A Morte da Verdade – Como a pós verdade corrói a forma com a qual absorvemos a realidade.

Michiko Kakutani é o nome por trás dessa obra, que expõe a podridão do processo revisionista e anticientífico que levou Donald Trump ao poder.

Para os jornalistas em todo mundo que trabalham para noticiar os fatos“. É com essa dedicatória que Michiko abre o livro A Morte da Verdade – Notas sobre a mentira na era Trump. Não poderia ser mais atual e bem vinda. Em todo o mundo se levantam grupos de extrema-direita dedicados a mudar a forma como vemos o passado, a fim de influenciar a forma como decidimos nosso presente e construímos nosso futuro. Dentro desse levante temos todo tipo de discurso anticientífico e revisionista que possamos imaginar, fora inúmeros grupos supremacistas, neo nazistas, disfarçados de partidos de Direita. E é sobre tudo isso, usando o recorte da eleição norte americana de 2016, que a crítica literária e ganhadora de um Pulitzer, Michiko Kakutani vem falar nessa obra.

Michiko Kakutani

No dia 9 de novembro de 2016 o mundo inteiro, boa parte dele atônito, acompanhava a vitória de Donald Trump na eleição presidencial estadunidense. Grande parte da Esquerda duvidou até os últimos instantes sobre uma possível vitória do empresário e ex-apresentador de reality show à cadeira mais importante da Casa Branca. Mas não foi por falta de aviso. Ali, às 3:00 da manhã daquela quarta-feira, se concluía um plano de manipulação de massas que havia começado anos antes, ainda nas eleições anteriores. Já aqui no Brasil o marco desse levante conservador foi em 2013, com uma onda de protestos que, devidamente sequestrados por uma agenda que em nada se preocupava com o povo, ocasionaram o impeachment da presidenta Dilma Rouseff.

Logo na introdução de seu livro, Michiko nos trás uma citação que resume bem a ideia dela ao escrever esta obra:

O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento).” (Arendt, 1951, As Origens do Totalitarismo)

A partir daí a autora vai construindo, capítulo por capítulo, uma sequência bem estruturada de análise dos degraus que nos levaram ao presente momento. Partindo de “O declínio e a queda da razão“, onde ela nos mostra como a crença nas instituições, na educação e na ciência vão sendo corroídas pelos instrumentos desse movimento, até “A felicidade dos trolls com a desgraça alheia“, no qual vemos a consolidação desse estado de quase “niilismo político” causado pelo mesmo.

Tomando como lição exemplos anteriores

Usando como exemplo o período Bush (2001-2009), Kakutani cita o desastroso episódio da invasão do Iraque para ilustrar como uma decisão inflamada por viés ideológico, ignorando especialistas e toda racionalidade de uma boa política diplomática, pode ganhar apoio popular como se fosse uma ótima medida. Movidos por um medo, metodicamente construído, a população norte americana validou uma ação totalmente ilógica no Iraque, quando o real motivo de tais ações nada tinha a ver com um enfrentamento de “vilões” iraquianos, mas sim uma longeva disputa na região por petróleo e poder político. Exemplos como esse apenas reforçam a ideia de como a população pode ser manipulada, para acreditar em quaisquer narrativas, por mais absurdas que elas sejam, desde que seja tudo feito da maneira correta.

Mais informação ou mais controle?

Com o crescimento das redes sociais, os mecanismos de controle e manipulação usados na política ganharam um refino perigoso. O que antes era controlado pela “Grande Mídia” e causava acordos promíscuos entre Estado e TV, agora é pulverizado nas mãos de influenciadores, que podem ser absolutamente de qualquer origem. Do pobre na periferia até o jovem coach de finanças em bairros de classe média alta, temos todo o tipo de personalidades da internet influenciando a forma como nos comportamos, vestimos, comemos, etc. Isso soa agradável quando pensamos que, aqui no Brasil, não faz muito tempo, o grande monopólio televisivo foi conivente (e até mesmo apoiador) de uma ditadura violenta e corrupta. Mas será mesmo que essa pulverização tem sido benéfica? Quando os algoritmos reforçam tudo aquilo que você consome, e procura, como informação primária na sua timeline, uma “bolha” se forma e seu mundo passa a ser moldado por uma espécie de lente de aumento. Essa distorção já é problemática nas mãos das grandes empresas, tornando o mercado ainda mais carniceiro no controle de tudo o que consumimos, mas nem se compara em como serviu feito uma luva para os manipuladores de opinião da extrema direita, o que é ainda pior.

Piada ou promessa?

Donald Trump sempre foi visto como uma figura grosseira e controversa, porém bem sucedida nos seus negócios (se não levarmos em consideração os inúmeros processos civis que ele já enfrentou pela maneira como lida com os mesmos). Entretanto, mesmo sendo um personagem ácido e contraditório em sua jornada, mudando de lado na política várias vezes, ele foi ganhando espaço num mundo curiosamente mais tolerante. Numa época em que as minorias ganham mais espaço a cada dia, um homem branco, cis, bilionário e notavelmente preconceituoso, ganha a eleição a presidência na maior economia do mundo. Como isso pode ter ocorrido? Muitos estudiosos políticos veem a ascensão de Trump como uma piada que se tornou promessa e depois se cumpriu. Fazendo um paralelo (entre tantos outros que podem ser feitos) com o nosso atual presidente, vemos um caminho bem similar. De participante de programas sensacionalistas e de qualidade duvidosa ao Planalto, Jair Messias Bolsonaro saiu de piada a símbolo de uma porcentagem relevante de brasileiros conservadores e de forte sentimento anti-esquerda. Independente de todos os sinais de completo despreparo, somados a um comportamento incompatível com o cargo, ele conseguiu se estabelecer como segundo lugar nas pesquisas, perdendo apenas para Luís Inácio Lula da Silva, preso meses antes do pleito. Seria nossa tolerância, e até mesmo certo descaso, com essas figuras controversas o combustível que elas precisam para alcançarem a notoriedade?

Pequeno em tamanho, grande em importância.

Mantendo um texto simples e cheio de referências muito bem colocadas, Michiko nos traz a uma importante reflexão sobre o momento tenebroso de nossa política e como essas raízes neofascistas vão se espalhando profundamente em nossa sociedade cooptando os desavisados e aumentando o rasgo da desigualdade a nível mundial. Nessas 216 páginas, relativamente pouco para a complexidade do tema, temos uma abordagem robusta do problema, mostrando a capacidade de síntese da autora. Para fechar o livro temos um guia de notas da autora mostrando todas as fontes espalhadas por toda obra, um complemento maravilhoso para quem quer se aprofundar mais no assunto e nas referências citadas ali. Kakutani deixa no leitor o gosto amargo de pensar que todo esse problema está aí não é de hoje e que esse cenário foi sendo desenhado bem debaixo de nossos narizes. Nos resta saber se poderemos contornar um cenário tão desfavorável e, se for o caso, o que nos esperará após ele…

A Morte da Verdade
Editora Intrínseca, 272 páginas
Capa dura

R$ 39,90

Pedro Rodrigues
Perdido na vida há trinta anos, sem vocação pra ser "cult" e fã dos escritores britânicos. Estuda tarô, cabala, hermetismo, magia do caos e teoria da Mãe Piruleta que traz seu amor em três dias em território nacional. Em meio a tudo isso descobriu seu animal de poder, uma lontra albina. Lendo de bula de remédio a Liber Null e Necronomicon, seu propósito com a escrita é esvaziar a mente e evitar com isso a perda do seu réu primário.

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