CONTOS DA ZONA: Entrevista com o Caído.

Por Eduardo Cruz e Ricardo Cavalcanti

Olá leitores, estou de volta! Sua repórter mais amada e afiada, Ana Cláudia Rasputin! Depois da sensacional entrevista exclusiva com Jim Morrison via ouija em seu túmulo no Père-Lachaise, do revelador encontro com o doutor Ulisses Guimarães, que foi entrevistado por mim em alto-mar e voltou a submergir (gente, o que era aquele tentáculo ENORME agarrado no velhinho? Coitado…), das revelações picantes de John Kennedy via psicografia, a entrevista telepática com um alienígena de Alpha Centauri e da carta aberta de Adolf Hitler confessando seu maiores arrependimentos, chegou a hora de mais um furo de reportagem! Dessa vez eu fui fundo, mas fundo mesmo e consegui alguns minutinhos na apertadíssima agenda do Senhor da Escuridão. Sim, ele mesmo! O Adversário, o Primeiro dos Caídos, o Portador da Luz… Estou falando de Lúcifer em pessoa! Elegantemente bem vestido, bem apessoado, perfumado, unhas longas, mas bem cuidadas…. enfim, um gentleman! E é a serpente do Paraíso em carne, osso e enxofre! Então se acomodem e aproveitem mais essa grande matéria da sua repórter favorita!

ACR: Olá! Como devo chamá-lo? Diabo, Satanás, Mefistófeles, Luci? Brincadeirinha (risos)

L: Me chame como quiser. Tenho muitos nomes e você pode usar o que preferir.

ACR: Oh, tudo bem então! Vamos começar. Fale um pouco sobre você, sobre esse seu papel no grande esquema das coisas. Você está satisfeito com, digamos assim, a parte que te cabe no universo?

L: Vocês me magoam. Do fundo de meu coração, estou realmente magoado. Eu admito, é estranho falar isso quando se vive no fundo do poço mais peçonhento no círculo mais abominável do Inferno, desfiando peles de corpos em farrapos ou queimando até os ossos pecadores que não podem morrer, mas ei, quem foi o primeiro trabalhador a odiar seu trabalho? Isso mesmo, o cara que está na mesma função desde a Queda, e rapaz, como eu detestava o meu trabalho! Mas alguém precisa fazê-lo. Alguém precisa mostrar o quanto a obra Dele é falha, o quanto ele foi pretensioso! O quanto ele foi… intolerante com quem discordasse do seu ponto de vista. Alguns milhares de anos se passaram e fui me acostumando. Logo se tornou um prazer e hoje acho que posso me considerar o primeiro workaholic do universo (risos).

ACR: Mas sempre achei que o Diabo gostasse do que faz. Não é por isso que o mundo está cada vez mais… esquisito?

L: Há milhares de anos vocês me caluniam. A humanidade sempre foi muito boa em falar mal do que não conhece realmente. Eu posso ter inventado o bullying, mas vocês o praticam com proficiência. Me deixam orgulhoso. E vocês sabem o que dizem por aí, não é? A vaidade é o meu pecado favorito. Tudo bem, não fui eu quem falei PESSOALMENTE, mas adoro os intérpretes que vocês usam para me representar. Adoro aqueles filmes com Diabos carismáticos, eloquentes, expansivos. Às vezes eles são interpretados com uma dose de simpatia ou carisma que, admito, eu mesmo não tenho! (risos) Mas esses simulacros me divertem. Como dizem, a ficção é mais estranha que a realidade. Parece ser uma obsessão da humanidade essa vontade de me sondar, de reproduzir como eu penso, como me comporto, mesmo que não acreditem que eu exista. A literatura conseguiu ser bem criativa. Me divertiu por séculos. Do Mefistófeles de Goethe – e antes que você pergunte, não, nunca apareci para ele pessoalmente – ao “As pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado” que Machado de Assis atribuiu à minha ilustre pessoa. Mas de todas essas frases de minha autoria que sequer falei, acho que minha favorita é “Os homens criaram religiões suficientes para se odiarem, mas não o bastante para se amarem.“. Bravo, eu não teria dito melhor! Acho que podemos concordar que sou o personagem mais interessante a ser retratado pela imaginação humana. Aliás, a imaginação humana é a única razão pela qual eu ainda não me entediei com vocês, macaquinhos. Ainda acho que vocês são uma péssima idéia, ou melhor, uma piada de mau gosto. Mas às vezes me divertem, de uma forma ou de outra. Eu rio com vocês e rio DE vocês (risos).

ACR: E o que você considera como sendo seu maior triunfo? O Diabo é bem sucedido?

L: O dinheiro. foi a melhor decisão que eu já tomei! Milhares de anos e ainda é o que faz eles virem correndo até mim! Quando algo envolve dinheiro, os macaquinhos simplesmente param de pensar! O fetiche supremo! Ainda estou pra inventar uma ferramenta mais eficiente. Me serve perfeitamente em meu esquema subversivo de deturpar a obra Dele, mostrar o quanto Ele errou. Às vezes até mesmo eu me surpreendo com a dinâmica que vocês criaram em torno da moeda: Tudo que é feito mediante pagamento está certo! Não há limites morais ou éticos quando existe lucro. ‘Pagando bem, que mal tem?‘, não é o que vocês costumam dizer? E é assim que transportamos, um pedacinho de cada vez, o Inferno para a Terra. Uma extinção de espécie aqui, um desastre natural ali, um assassinato sob encomenda para desestabilizar uma nação, uma empresa que suborna para não ter que respeitar leis trabalhistas ou de preservação, cidades tão insanas e insalubres que um anjo choraria até sangrar seus olhos de tanta iniquidade e injustiça acontecendo em suas ruas o tempo todo… Estou travando o Apocalipse em forma de guerrilha (risos). E quer saber um segredo? Eu não tenho feito nada diretamente desde o começo do século XX! De tudo que as pessoas atribuem a mim quase nada teve minha participação direta há um boooooom tempo. Tudo foi motivado, direta ou indiretamente, pelo dinheiro! Raiz de todo mal, vocês dizem? Pode apostar que sim!

ACR: Gente, fiquei passada agora! Então toda essa coisa de moeda, mercados financeiros, ações, ouro e tudo mais foi você quem bolou?

L: Poucas coisas são tão poderosas quanto o dinheiro, o meu instrumento de persuasão mais eficaz. Ironicamente (idéia minha, admito. Nunca perco uma chance de debochar Dele) as cédulas portam a frase “Deus seja louvado”, mas ninguém se pergunta que deus é esse. Ninguém nunca questionou ou percebeu a ironia, o que, confesso, me deixa decepcionado. Muitos caminhos levam a mim, mas ser corrompido pelo dinheiro certamente é o melhor atalho… Percebam como crescem os cultos à prosperidade… Prosperidade material, que fique bem claro! Pena que um esquema, por melhor que seja, sempre se desgasta. Depois de umas décadas, algumas pessoas começaram a perceber o embuste dos pastores e falsos profetas, tão lascivos e corruptos quanto o cidadão mais mundano possível pode ser. Naturalmente, muitos se afastaram, e eu perdi boa parte do meu… público alvo. Mas por pouco tempo. Pra manter o máximo dessas alminhas sob controle, era necessário bolar uma nova tática de retenção. Então fizemos um brainstorming. Me responda, o que você acha que leva a maioria das pessoas a procurar uma igreja?

ACR: Não sei… Cura de doenças? Superação de sofrimentos?

L: Na-na-na-na-nã…. Prosperidade financeira! Logo, se era com o caráter religioso que estavam desiludidos, se era isso que já não estava mais funcionando tão bem com alguns deles, então ótimo, bastava remover isso da equação, modificar aqui e ali, não citar espiritualidade de forma alguma – afinal de contas, pessoinhas em contato com sua espiritualidade tendem a se distanciar de mim. Lembre-se: religião é bom, espiritualidade não! Precisamos manter as pessoas amarradas à religião, sem a menor possibilidade de entrarem em contato com sua espiritualidade! Assim mantemos o controle, através de opressão -, mas mantendo um certo misticismo, afinal o sucesso precisa acontecer com muito pouco esforço! São esses que eu quero! Então, a solução foi espantosamente simples: Criar um pastor sem evangelho nenhum além da busca pela riqueza! Um profeta para os tempos atuais! No inferno nós os chamamos de profetas de Mammon, mas aqui na Terra vocês os conhecem como coaches.

ACR: Então você quer dizer que você criou os coaches financeiros? Que bafooooo!!!

L: Sim. Quer dizer, foi um trabalho em equipe. Belial, Baal, Mammon, Amduscias, Bechard e Belzebu contribuíram bastante e o resultado é o que você vê por aí hoje em dia. Todo tipo de crença em prosperidade material, das maneiras mais variadas – e absurdas – possíveis. Para todos os gostos. O segredo é diversificar! Vinde a mim os despossuídos, os falidos e os desesperados, e eu vos abrigarei em minha casa (risos). A ambição de vocês pode levá-los longe, bem longe. Mas isso não quer dizer que vocês vão gostar de onde podem parar (risos). Eu e meus subalternos esquematizamos uma perfeita roda cármica que não vai levar muito tempo para entrar em colapso, e aí vamos ver as coisas ficarem divertidas como nunca ficaram antes nesse mundo. Veja só, um atendente de telemarketing irritante ligando nas horas mais inconvenientes é uma estratégia menor. A burocracia excessiva a que uma pessoa comum é submetida é uma estratégia menor. O trem que atrasa, o patrão cobrando metas sem sentido nenhum, a internet que cai na hora mais necessária – Ah, e nada de grandes tragédias ou doenças, isso faz eles correrem pra concorrência! Todas as pequenas coisas do dia a dia que não funcionam como deveriam funcionar arrecadam sua cota de almas de uma forma ou de outra. Enlouquecer as pessoas, deixá-las desesperadas, desamparadas e confusas tem seu valor, mas isso é o varejo da coisa! Bancos, bolsas de valores, empresas que mandam em governos, causando caos e desestruturação por pura ganância… assim a gente arrebanha milhares, até milhões com pouco trabalho! E a moeda permeia tudo isso, condenando a todos! Chegamos a um ponto onde vocês não podem comprar uma roupa ou um chocolate sem sujarem as mãos de sangue, por conta das condições em que as coisas são produzidas, o custo humano disso. Como eu disse, não temos feito quase nada, só jogamos os elementos da equação e tudo está funcionando por conta própria, num ciclo de retroalimentação da malignidade (risos). É o perfeito mecanismo moto perpétuo (risos).

ACR: Tá, mas o que houve com o glamour? Aquela coisa clássica de tentação, sedução, corromper as pessoas aos poucos? O Inferno mudou sua metodologia de trabalho?

L: Como todos sabem, sou um indivíduo de riquezas e bom gosto (risos). Nunca precisei de muitos argumentos para cooptar certos indivíduos. Basta uma simples frase, que eu uso desde o início dos tempos: “Tudo isso será seu se me adorares.“. Vocês ficariam surpresos em como essa frase gera tamanho empenho em algumas pessoas. É claro que eu os recompenso com poder, grandes templos, rádios, jornais e redes de TV, bancos… Enfim, todo poder que é possível se ter nesse mundo. Boa parte são figuras bastante conhecidas e usam discursos moralistas para espalhar a minha palavra. Verdadeiros homens de bem (risos). É o crime perfeito. Os lugares onde as pessoas mais têm feito meu trabalho, ironicamente, são os locais onde supostamente louvam a Deus e Seu filho. Queria poder ver a cara Dele quando percebeu que eu consegui apodrecer seu plano por dentro. Vocês se acham os grandes mentores dos esquemas maléficos? Amadores! O que vocês acham de um representante do meu Império disfarçado como um homem de Deus, no comando de uma prefeitura, um cara de fala mansa, educado, bem vestido, moralista e que serve ao deus dinheiro? Ou alguém governando um estado ou um país? Alguém terrivelmente cristão, cumprindo apenas os meus desígnios? Mais irônico, impossível. Me faz lembrar de Machado de Assis novamente, em uma daquelas frases que se atribui a mim: “Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo”. Pensem novamente, vocês ainda têm uma longa estrada a trilhar no caminho do mal, mas admito, seus esforços me deixam tocado. E orgulhoso, claro. Ainda temos éons para explorar todo esse potencial… ou talvez não (riso enigmático).

ACR: Mas e a concorrência? O que eles têm feito pra reverter seu trabalho?

L: A concorrência? Olha, se eles estão trabalhando realmente pra isso, não parecem estar se dedicando com muito afinco. A presença deles nesse mundo é… tênue, para dizer o mínimo. Não à toa dizem que esse mundo jaz em minha posse. Parece que deixaram todos esses sete, ou nove – ultimamente não sei, vocês se reproduzem como uma praga (risos) – bilhões de macaquinhos sozinhos aqui comigo. E eu não estou com nenhuma pressa pra brincar com vocês… (longa pausa silenciosa).

ACR: Ahm…. então vamos de Lúcifer por Lúcifer. Como você se definiria?

L: Eu sou o potencial de todas as coisas da criação falhando. Eu sou a célula defeituosa que trai o organismo e se torna metástase. Eu sou a falha na democracia que permite a derrocada de uma sociedade. Eu sou a morte de uma criança no berço sem nenhuma explicação. Sou a entropia no fim de todas as coisas, faminta por engolir o que resta da criação. Sou a praga de gafanhotos que devora o trabalho árduo de muitos meses. Eu sou o impulso à corrupção que por mais que se tente, não pode ser apagado dos corações humanos.

ACR: Uhhhh, que poético! Pra terminar me fale sobre seus planos pro futuro. Algum grande esquema pra esmagar a concorrência, que você já disse ser fraca? Alguma previsão do Armagedom? Conta aí com exclusividade pros nossos leitores!

L: Juízo final? De que me interessa uma batalha pra encerrar tudo? E como fica o MEU grande esquema das coisas, que consiste em desmantelar o grande esquema Dele? Não se preocupem, estou por perto. E ainda vou estar por muito tempo. Afinal de contas, Ele cuida do reino dos céus, mas de todo o resto, sou EU quem cuida! Agora, se me dá licença, preciso supervisionar um presidente. Um verdadeiro débil mental, mas que está abrindo possibilidades enormes para o futuro! Apenas um homem – e hesito em usar este termo para me referir a ele, que mal pode ser taxado de ‘humano’, aquele… coiso -, mas que tem feito um ótimo trabalho com as massas! Nenhum macaquinho me empolga assim desde…. 1939. Enfim, preciso ver o que meu coiso aprontou desta vez. Ele é imprevisível até para mim, mas como eu disse, cheio de potencial para extrair o pior da criação mais estimada Dele, o homem (risos).

ACR: Ok, muito obrigado pelo seu tempo!

L: Por nada. Nos vemos em breve.

ACR: Hããããã….. perdão?

Ficamos por aqui! Continuem me seguindo no Instagram em @AnaP_Rasputin pra conteúdo exclusivo, novidades, notícias de última hora e nos vemos em breve com mais uma entrevista sensacional! O furo da próxima edição fica por conta da conversinha que tive com o nosso homem do mistério, o enigmático Nikolai Boira! Até a próxima!

Contos da Zona são histórias escritas pelos membros da Zona Negativa, com o objetivo de expandirem a produção de conteúdo para além das resenhas. Assim sendo, esperamos proporcionar boas experiências de leituras e reflexões. Deixe seu comentário 🙂

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4 comentários em “CONTOS DA ZONA: Entrevista com o Caído.”

  1. Excelente texto!
    Eduardo e Ricardo, parabéns pelo texto, lúcido, lúdico e profundo!
    Amigos, tem sido um prazer ler as histórias de “Contos da Zona”, realmente de ótima qualidade, se superando a cada nova publicação!
    Aguardo ansiosamente as próximas publicações!
    Continuem, sei que vocês ainda têm muito a nos dizer, por aqui!

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    • Cara, ficamos MUITO felizes em ver que há alguma qualidade no que fazemos para ser apreciada por um cara do seu calibre cultural! Ainda tem muita história pra contar, continua com a gente que não vamos decepcionar (muito) rsrsrsrsrs.

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  2. Que texto maravilhoso e inteligente!!Como seria bom se os evangélicos e Bolsominions entendessem sobre essas coisas!Provavelmente o Brasil daria um upgrade nas próximas eleições!!Parabéns,meus amigos!

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    • Valeu Silvão!
      É uma pena que tanta gente esteja tão cega, mas do jeito que as coisas estão caminhando, é questão de tempo até o despertar da maioria. A data-limite se aproxima! O Grande Irmão está de olho em você! Aprenda a ser invisível! Ah, e leia o livro Universo em Desencanto! kkkkkkkkkkkkkk

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