CONTOS DA ZONA: Espelhos

Por Tárcyla Arruda (@arrudatarcy)

As ondas dos seus cabelos negros emolduravam o seu rosto, enquanto o sol acariciava os seus olhos e lábios. Aquela criatura doce, de voz suave, não parecia ser capaz de atrocidade alguma, porém por conta disso deixei-me enganar.
Ele sorria para mim, com os seus dentes bagunçados e tortos, ao mesmo tempo em que enrolava o cacho de sua franja com o dedo indicador. Estava sentado, me desafiando com a sua postura largada e confortável e com os seus olhos repletos de confiança. Era como olhar para um espelho, mas a dor de imaginar que poderíamos ser a mesma pessoa me cortava a vista como um feixe forte de luz.

Estávamos frente a frente: almas gêmeas, parceiros de um crime perfeito, mas ao
contrário dele, eu não gostava disso.
O homem sorria para mim enquanto listava os nomes de suas vítimas.
– Essa aqui foi de estrangulamento, essa foi afogamento e aquela ali, foi incêndio, matei toda a família dela – dizia ele com brilho nos olhos e entusiasmo.
Eu virava o meu rosto, implorava para não precisar ver aqueles rostos, os nomes e as causas das mortes, porém ele não poupava detalhes e fazia questão de imitar até os sons que as vítimas emitiram antes de morrer.
– Desgraçado! – eu gritei. Entretanto, o meu protesto não adiantou, pois o meu medo e repulsa alimentavam a sua alma suja.
Eu gritava e chorava muito enquanto lutava contra as amarras que me prendiam, e como esperado, o Homem se divertia assistindo a cena. Ele gargalhava tanto que lágrimas caíam dos seus olhos e dançavam em suas bochechas.
Para o Homem, quanto mais eu odiasse aquilo, mais ele gostava. Todavia, depois de uma enxurrada de xingamentos, ele se cansou e aquele teatro todo havia perdido a graça, então ele se preparou para o próximo espetáculo.
A criatura cruel e perversa levantou-se rapidamente e fechou a minha boca com fita – já cortada nos cantos de tanto esticar para gritar, abriu a porta e desceu as escadas e me disse que voltava já.

A casa era minha. Na verdade, nossa. Mas eu havia chegado lá primeiro. Quando
cheguei, a casa era abandonada e toda destruída, como se um furacão tivesse passado apenas dentro dela. E eu, sozinha, limpei tudo, pintei as paredes, botei cerâmica no chão, comprei móveis novos. Fiz todo o trabalho sozinha, porque eu amo receber o mérito das coisas. Até que um dia, o Homem bateu em minha porta dizendo que corria perigo e que estava sendo perseguido por um grupo de assassinos muito perigosos. Ele me disse que tinha uma dívida imensa com eles, e que a única forma de pagar seria com a vida, então, mesmo com medo e a consciência de todos os conselhos sobre ter cuidado com estranhos que recebemos ao longo da vida, o aceitei e permiti a sua entrada.

O rapaz se mostrou gentil, doce, e esforçado. Todos os dias ele limpava a casa comigo, nós dois zelamos um pelo o outro e nos tornamos parceiros inseparáveis. Ele havia me dito mais cedo que traria uma moça para a nossa casa, porém nesse dia eu larguei cedo do trabalho, então estava em casa quando ouvi gritos vindo do primeiro andar. Imaginei que os gritos fossem de diversão, sei lá, vai saber o que cada um gosta de fazer entre quatro paredes, portanto continuei realizando as minhas tarefas tranquilamente. Tirei as minhas roupas e fui tomar um banho, logo em seguida vesti as roupas limpas e fui à cozinha esquentar comida. Até que as pancadas no chão foram aumentando o volume e eu pensei “Uau, quanta intensidade!”. Sentei na cozinha, botei os meus fones de ouvido e comecei a comer a lasanha da noite anterior. A música nos fones abafava o barulho que vinha de cima, então eu não ouvi mais nada.
Nos dias seguintes, nós nos cumprimentamos no café da manhã e mantivemos a nossa relação na mesma rotina de sempre, pois nada havia acontecido, além da noite selvagem que ele teve alguns dias atrás.
Numa quarta-feira, oprimida pelo escuro do céu, entrei em casa e o chão estava coberto de sangue. A minha reação instantânea foi um susto de tomar a respiração, por isso deixei a porta aberta e com o número 190 no teclado do telefone, corri para ver como o meu parceiro estava.

Procurei na casa inteira, abri porta por porta e nada dele, até que fui até o quintal e lá estava o Homem: coberto de sangue e com o corpo de uma menina que, pela altura, não era uma criança. O medo, a ansiedade, as dúvidas, a aflição, o choro tomaram conta da minha mente e uma tontura se instalou na minha cabeça. O meu corpo todo tremia e o meu pulmão se comprimiu buscando ar para respirar. Eu queria me aproximar e saber o que havia acontecido, sanar vários questionamentos que atordoavam a minha mente naquele momento, mas não consegui. Repentinamente, desaprendi a andar, a falar, a me mover. O meu corpo não obedecia mais aos meus comandos e passei ali uns 10 minutos, estupefata com a cena que estava assistindo. Enquanto o homem olhava para mim com uma expressão de desespero e entusiasmo, eu entendi que a reação dele dependeria da minha, porém eu continuei incrédula sem saber o que diabos estava acontecendo ali. Até que, farto de todo aquele clima, ele se levantou e veio caminhando lento até mim e estendeu a sua mão ensanguentada. Eu estirei a minha e nós demos as mãos, enquanto ele me guiava até o corpo e a poça de sangue enorme na areia do quintal.

Eu estava certa, não era uma criança. Também não era uma adulta. Pelo rosto jovem e o estilo da roupa, a menina parecia ter mais ou menos 16 anos. Era bastante curvilínea, o seu cabelo era tão cacheado e platinado que parecia algodão doce, a sua pele era retinta e os seus olhos estavam fechados com força, como se antes da morte ela tivesse sentido muito medo, dor e outras sensações indescritíveis que só quem passa antes de morrer deve sentir.

– Ela não é a coisa mais linda que você já viu no mundo? – Os seus olhos brilharam ao me perguntar isso, e o seu riso tão contido, que se eu não conhecesse o homem, jamais saberia que ele sentia vontade de rir naquele momento.
Olhei para ele, para suas mãos, para a adolescente, para a areia, para o céu. Os meus olhos alternavam nessa ordem, mas não consegui falar nenhuma palavra. Eu tinha perdido a habilidade da fala.

Uma dor aguda penetrou a minha cabeça como milhões de agulhas furando-a, o que me fez perder a força nos joelhos e cair de quatro no chão. Nesse momento, o homem não aguentou e soltou uma gargalhada alta e compulsiva. Quanto mais a sua gargalhada ganhava volume, mais a minha mente ficava confusa com as imagens apresentadas a mim, e eu senti que por um momento os meus olhos pudessem estar me enganando, até que o cenário e o sorriso do meu parceiro foram se afastando, e se afastando… E eu desmaiei.

Depois de dois minutos que ele me acordou, e a primeira coisa que eu vi foram os seus olhos grandes cheios de expectativas, eu me levantei rapidamente e as únicas palavras que saíram da minha boca foram: nós temos que dar um jeito nisso! Ele concordou, e começamos a cavar um buraco grande o suficiente que coubesse o corpo da jovem e que a deixasse confortável em seu momento de paz eterna.
Cansada e super suada de tanto tirar e pôr areia, eu disse para ele que não aguentava mais e que precisava de um banho, e que ele tinha que se virar para cobrir o corpo de areia e fechar o buraco. Ele assentiu.

Enquanto eu tomava banho, fiz um esforço enorme para afastar de mim a imagem da
garota da minha cabeça. Porém, quando eu menos esperava, estava tentando adivinhar o seu nome e endereço. Queria saber sobre a sua vida e criava várias situações em minha cabeça. Imaginava como soava a sua gargalhada e como era o seu jeito de andar. Me peguei imersa em pensamentos, então desliguei o chuveiro e fui dormir. No dia seguinte quando acordei, desci para a cozinha e fui tomar o café. O meu parceiro já estava lá e havia preparado o meu café, como ele fazia quase sempre. Não conseguia olhar para os seus olhos, embora ele estivesse frenético, puxando vários assuntos e falando alto como se estivéssemos a 3 cômodos de distância. Pedi para ele me passar o suco de manga e perguntei se estava com açúcar, essas foram as únicas palavras que nós trocamos em dois dias.

No terceiro dia após o assassinato da adolescente, já tínhamos voltado a conversar, e ele me contou que teve uma ideia para as nossas férias de janeiro, logo nós dois começamos a planejar as nossas viagens pelo norte do país.
As semanas passaram, e tudo estava perfeito de novo. Nossa relação estava mais sólida do que nunca, até que ele me perguntou se podia trazer um rapaz que havia conhecido na padaria para nossa casa. De primeira eu estranhei, pois ele não havia me dito que também gostava de rapazes, logo em seguida, eu disse que tudo bem e que depois eu adoraria conhecer o jovem. Ele sorriu, me abraçou e me deu um beijo na testa. Eu já estava adormecendo quando ouvi os ruídos, tentei me concentrar no meu sono, mas não adiantava mais. A curiosidade tomou conta de mim e eu fui ao seu quarto verificar o que estava acontecendo.

Ao chegar lá, me deparei com uma cena nojenta: ele havia cortado a cabeça e o pênis do seu “encontro”, e fiquei mais surpresa ainda pois aquele era o meu professor. Ele estava em cima do senhor quando invadi o seu quarto, e num reflexo instintivo fechei a porta e corri para o meu quarto. Uma hora depois, o meu parceiro aparece em meu quarto limpo e cheiroso, com os seus olhos doces e me acalenta, enquanto o meu corpo todo estremece com o seu toque e os meus olhos afogam-se em lágrimas salgadas e amarguradas.
O Homem tentou me tranquilizar dizendo que me amava e acariciando o meu rosto. Sem aviso prévio algum, desabei em seus braços enquanto ele cantava, e adormeci como se estivesse sedada.

Aquela não havia sido a segunda vez, pois antes da adolescente teve a outra mulher, e antes dela, em outros lugares, tinham sido outras pessoas. Depois do meu professor, ao que eu pude contar, vieram mais dez. Era compulsivo, insaciável, faminto e incompreensível. Ele tinha que matar a todo custo. E depois de ter ignorado e acobertado todos os assassinatos dele, coisa que eu fiz de bom grado e por nossa amizade. Não conseguia mais me encarar. Tudo nele me enfurecia e me amedrontava ao mesmo tempo. Quando eu tinha sorte, os dias eram cinzas, se não, completamente escuros e abafados. Viver naquela casa, ao lado dele, dentro de mim, era sufocante.

Eu não me reconhecia mais, o meu parceiro me transformou numa assassina. Tudo isso apenas porque segui os seus olhos doces e o seu sorriso meigo, o que me levou a enterrar mais de dez pessoas em vários lugares diferentes. Ele me fez igual a ele, e eu não consigo fugir disso. Abriguei em minha casa um assassino sedento por sangue, que se contenta em desfigurar as suas vítimas e que suga o meu prazer e a minha pureza a cada assassinato cometido. Nesse ritmo, comecei a me sentir coagida. Ironicamente eu, que tinha o costume de tratar bem todo mundo e cuidar das pessoas. O meu cuidado e a minha gentileza ajudaram a tirar mais de 10 vidas, e esse fato me atormenta todas as noites.

No começo eu tinha alguns pesadelos, porém quando o simples ato de deitar a cabeça no travesseiro e desligar a mente para dormir se tornou impossível, o meu parceiro vinha com toda a bondade para o meu quarto e se deitava ao meu lado, enquanto acariciava as minhas madeixas e cantava para que eu dormisse – e que voz angelical ele tinha! Nem parecia que era o próprio demônio. Entretanto, não é de hoje que as pessoas nos dizem que o diabo tem várias facetas para manipular os mais fracos, e isso, era exatamente o que meu parceiro fazia. Tinha pele de cordeiro, mas era um lobo faminto querendo roubar a minha alma.

Quando o toque dele se tornou detestável e repulsivo, comecei a mentir e dizê-lo que os pesadelos haviam se encerrado e que já conseguia dormir tranquilamente, só para não mantê-lo perto de mim por tanto tempo, porque eu não me sentia mais segura. O meu parceiro pareceu ficar feliz com a novidade, pois naquele momento ele entendeu que eu estava ficando igual a ele. Porém, quando eu deitava na cama, a noite parecia engolir o meu quarto com mais voracidade do que nos outros dias, e as estrelas se aproximavam de mim enquanto gritavam violentamente me chamando de assassina, desgraçada e filha da puta. Elas ultrapassavam todos os limites da velocidade e vinham correndo atrás de mim para vingar todos os assassinatos. Ao mesmo tempo em que as paredes se moviam na direção uma da outra, lentamente, para se chocarem e me matarem espremida. Todas as minhas noites eram assim: a minha cama me levava para o inferno em segundos, onde eu conhecia em vida todas as almas que eu ajudei o Homem a selar os seus destinos cruéis – e juro que um dia até convocaram uma rebelião no inferno para me matarem!

Uma das vítimas, a criança paraibana de 10 anos, me amarrava em um pau e jogava
gasolina em mim, enquanto todos os outros me cortavam, cuspiam em mim, para em
seguida atearem fogo a meu corpo. A dor era pungente, e quando o céu clareou, eu ainda sentia todo o meu corpo doer. Passei semanas doente, o que tornou tudo pior, pois fiquei reclusa com o assassino.

Agora, sentada arrependida de todas as vezes que eu encobri o assassino para protegê-lo, por ser humana demais, todas essas memórias de dores e torturas invadem a minha cabeça, todavia, esse ainda é o pior cenário de todo o inferno que já vivi com esse miserável, porque parece que chegamos ao fim e ele, infelizmente, ganhou, triunfante com todas aquelas mortes nas costas. Se houvesse um troféu para tamanha perversidade, o Homem com certeza os colocaria em uma estante de vidro no centro da sala, e mostraria cheio de orgulho, para todas as visitas – antes de matá-las.

Passos leves e tranquilos, soavam até como melodia, avisavam que alguém descia os
degraus da escada. Tão lento e em paz com a situação, ele não se importava com o que os outros sentiam, apenas em saciar os seus desejos primitivos e doentios.
Quando desceu o último degrau, consegui ver o que ele trouxe consigo: uma mulher alta, magra e com uma touca que cobria todo o rosto dela e os cabelos.
– Ansiosa para ver o meu novo brinquedo?
Atônita, não respondi nada. Insatisfeito, com a minha ausência de respostas, ele deu um soco na barriga da mulher a minha frente, o que a fez gemer e me causou um enjoo profundo.
Os meus olhos encheram de lágrimas e senti o meu rosto ruborizar-se de ódio, porém
continuei calada. Mais uma vez o Homem agredia a mulher, porém dessa vez ele socou o seu rosto e apertou o seu pescoço com as duas mãos. A mulher gritava, mas os seus gritos eram praticamente inaudíveis, por conta da falta de ar provocada pelo
enforcamento e a touca que limitava a sua respiração. Até que eu gritei e pedi para ele parar, mas ele não atendeu ao meu pedido e continuou enforcando-a, porém cada vez com mais força. A mulher estava desfalecendo em suas mãos e ele não parava; os seus olhos brilhavam e sua boca contraía-se em um sorriso entusiasmado. Eu gritei, me debati, chorei, mas ele não soltou o pescoço dela até tirar o resto de vida que movia o seu corpo.
Logo depois, lentamente ele tirou a touca do rosto da mulher, e a trouxe para perto de mim. Na hora que os meus olhos encontraram a sua face, fui tomada por um horror imensurável, a minha voz havia se escondido no mais profundo lugar de meu corpo, porém os meus olhos continuavam fixos na mulher a minha frente: era como olhar para um espelho, ela tinha exatamente os mesmos traços que os meus, a mesma cor de pele, as mesmas marcas no rosto. Como poderia ser possível?
A minha cabeça ficou pequena para tantos pensamentos que corriam dentro dela sem parar, enquanto o Homem olhava para mim esperando alguma resposta, o pânico causado pela cena perturbadora que eu acabara de ver se alastrou dentro de mim, e num misto de confusão e horror, comecei a convulsionar até desmaiar.
Depois do passar de várias horas, acordei sozinha, no escuro, com muitas dores
musculares e toda machucada. Procurei pelo meu parceiro, mas ele não estava mais
naquele cômodo. Quando percebi que estava desamarrada, me levantei lentamente com muita dificuldade por conta da tontura, e subi as escadas à procura do Homem, mas não encontrei nada. Já estava começando a ficar preocupada, por estar sozinha em casa e não lembrar o que havia acontecido e a razão que me levou a passar horas, inconsciente naquele cômodo escuro, e ainda acordar toda machucada. Quando passei de frente para o espelho da sala, parei para checar o meu estado e percebi que o meu pescoço estava com marcas roxas de dedos e que minha boca estava toda cortada.

Os Contos da Zona são histórias escritas pelos membros da Zona Negativa, com o objetivo de expandirem a produção de conteúdo para além das resenhas. Assim sendo, esperamos proporcionar boas experiências de leituras e reflexões. Deixe seu comentário 😁

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