DEUSES CAÍDOS, de Gabriel Tennyson, ou “Aqui no RJ se pronuncia “Conxxxxtantchine”!!!!”

Quem nunca brincou com alguma coisa (supostamente) sobrenatural na adolescência, essa época da vida em que uma estranha mistura de fanfarronice, curiosidade e falta de noção se manifesta na molecada? Seja tentando contatar espíritos com um compasso, ou o ocultismo nutella do Charlie Charlie, com o famigerado Jogo do Copo – a Ouija de pobre – ou comprando um livro de São Cipriano em um sebo qualquer, para, 15 minutos depois, devolver o livro horrorizado pelo conteúdo barra pesada do mesmo (Essa eu já fiz heheh. Mas ei, eu tinha só 14 anos!). E foi assim que o nome Cipriano ficou para sempre marcado na minha memória rsrsrs.  

O livro São Cipriano do qual eu fui dono por uns 15 minutos antes de arregar rs
Invocação de espíritos, século XXI style 🤦🏻‍♂️🤦🏻‍♂️🤦🏻‍♂️

Depois do perverso Ultra Carnem, de César Bravo, e do sangrento Jantar Secreto, de Raphael Montes, a literatura fantástica nacional acaba de ganhar mais um reforço. Gabriel Tennyson desponta com seu romance de estreia formidavelmente macabro, envolvendo sociedades secretas, demônios e outros seres mitológicos, ambientado no Rio de Janeiro dos dias atuais e com uma trupe de personagens interessantes. 

Deuses Caídos é um thriller de mistério com toques de fantasia urbana e horror sobrenatural. Tudo começa com um misterioso serial killer que vem assassinando evangelistas famosos. E com um detalhe tétrico: O faz utilizando a Internet para veicular as atrocidades, com um público cada vez cruel e ávido por violência que vem crescendo a cada crime cometido – um sagaz comentário a respeito da perversidade que o anonimato concedido pela Internet confere. O assassino encarna uma figura messiânica que alega realizar uma justiça divina merecida pelas vítimas. Além disso as atrocidades sugerem haver um elemento paranormal envolvido. Isso ameaça o trabalho desempenhado pela Sociedade de São Tomé, um braço da Igreja Católica responsável por manter secreta a existência de criaturas sobrenaturais vivendo entre nós, embora exista todo um submundo de criaturas místicas habitando a cidade do Rio de Janeiro e seus recônditos mais obscuros, da Vila Mimosa até a Ilha do Fundão, passando pela Lapa e Santa Tereza, a Cidade (já nem tão mais) Maravilhosa certamente é o personagem principal do livro.

O membro da Sociedade São Tomé encarregado da captura deste estranho assassino é o veterano Judas Cipriano, um padre badass descendente de São Cipriano (Aquele mesmo do livro de magia negra, lembram?), que possui estranhos poderes sobrenaturais. Judas é o padre mais improvável possível: Boêmio, beberrão, usuário de substâncias tóxicas, frequentador assíduo dos pontos de travestis da Lapa, e com uma infância bizarra que envolvia maus tratos extremos por parte de seus estranhos pais. Uma espécie de John Constantine carioca, guardadas as devidas proporções.

Cipriano é convocado para trabalhar como consultor da Polícia Civil na investigação – atentando para os aspectos sobrenaturais do crime, logicamente – e lhe é designado como assistente a policial Júlia Abdemi, que seria uma pessoa comum, não fosse por seu dom de se comunicar com máquinas (Coisa de uma HQ de Warren Ellis, mas que fica ainda melhor e mais brazuca depois de uma revelação lá no ato final). Juntos, os dois passarão por uma tour de force, durante quatro dias, revirando o submundo místico da Cidade Maravilhosa atrás de pistas para capturar o assassino. E tentando sobreviver às descobertas que realizam pelo caminho em busca de pistas.

E aí? Impactados? Eu fiquei. Bastante.

O verdadeiro São Cipriano

Promissor, não? Um thriller urbano de investigação, com toques de fantasia macabra, muito gore, demonismo trevoso, releitura de seres mitológicos sob uma nova roupagem… Promissor é só o resumo mesmo. O livro em si é FODA. Deuses Caídos é provido de um ritmo narrativo impecável e um texto fluido. Algo impressionante, ainda mais se levando em conta que este é o primeiro livro de Tennyson. “Minhas influências visuais vieram de filmes como Silent Hill, Hellraiser, O Labirinto do Fauno e Seven – Os Sete Crimes Capitais. Se eu tivesse que definir o livro em uma frase, diria que é uma espécie de Hellboy tão violento quanto os filmes de Hannibal Lecter.“, declarou o autor em uma entrevista.

Gabriel Tennyson

Nosso país é essencialmente pluricultural. Aqui, nesses últimos cinco séculos, tudo se misturou, se mesclou e foi sincretizado, desde os genes até a religião e o folclore, e Tennyson soube usar bem o que temos de mais rico: Essa infinidade de mitos, lendas e referências, inclusive sem perder o senso de contemporaneidade. Assim, referências da cultura de massa como X-Men, Star Wars, Arquivo X e o BvS de Zack Snyder se mesclam e coexistem junto ao  regionalismo de um Cramunhão da Garrafa ou a Vovó Mafalda, por exemplo. Tennyson mastiga e redefine uma nova roupagem para seres mitológicos, fazendo sua existência no Rio de Janeiro contemporâneo ser plausível. Elementais da terra, súcubos, golems, fadas do dente, sacis, mapinguaris, dragões chineses, gárgulas, vampiros… Nah, os vampiros foram preservados. Algumas coisas são sagradas hehehe. A única alteração que os vampiros sofreram nessa história foi terem a aparência do José Serra e o modo de falar de Michel Temer, o que, na minha opinião, foi bem adequado.   

Já o protagonista Judas Cipriano, sob a ótica dos leitores de quadrinhos adultos, vai, em alguns momentos remeter ao já famigerado John Constantine da Vertigo/DC Comics: Um especialista em demonologia e exorcismo, que é frequentemente compelido a manter o mundo nos eixos, servindo de antagonista a entidades perversas que querem acabar com a humanidade. Isso sem mencionar pelo menos dois blefes espetaculares na história, em situações sem escapatória nenhuma. Como Constantine, Cipriano se dá safa melhor dos perrengues na lábia, ou no dialeto fluminense, no caô, do que propriamente na magia. 

Sobretudos são inviáveis na Cidade Maravilhosa. Mas ter um taxista à disposição sempre é bom.
Arte de Tim Bradstreet.


Deuses Caídos chega com os dois pés na porta, pesado e arrebatador desde a primeira página, contando uma história de mistério sombria e grotesca, sem quaisquer amarras ou restrições, e portanto, indicada para os de estômago mais forte, e cativante até o final, que não brinca com a inteligência do leitor e ainda acena a possibilidade de um novo e ainda mais interessante recomeço ao final de suas páginas. Quem ama Hellblazer, Hellboy, Clive Barker e fantasia urbana em geral pode embarcar sem medo. É só entregar a alma…

“Deuses caídos mistura descrições bizarras com personagens inusitados e ajuda a criar um tenebroso imaginário brasileiro. Gabriel Tennyson é uma voz nova e original no terror nacional.”

Raphael Montes

Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

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